Trabalho de Campo?
No âmbito da cadeira de Pediatria I, e como forma de avaliação, compete-nos a realização de um “Trabalho de Campo”. Este trabalho, penso eu, traz ao de cima a importância de sermos treinados para uma prática médica humana e autónoma. Muito em breve, seremos colocados face a face com os doentes e com os seus familiares e será da nossa responsabilidade os nossos comportamentos, a nossa postura. E a partir dos nossos contactos, livremente escolhidos, havemos de elaborar inúmeros relatórios, de incontáveis doentes, com patologias tão variadas como aquelas que encontramos nos livros pelos quais actualmente estudamos.
Muito em breve, tal como nos iremos aperceber, as nossas competências como profissionais de saúde e o nosso impacto último no outcome do doente dependerá em grande medida da nossa capacidade de chegar até este e de nos associarmos às suas ânsias, às suas dúvidas, conseguindo com isso e com o nosso grau de conhecimento ímpar (fruto do nosso estudo, do contacto com pares mais treinados e sabedores, e fruto também da nossa paixão e dedicação) aumentar mais e mais a sua qualidade de vida e diminuir mais e mais o desconforto das doenças preveníveis.
Dia(s) do Parto – Dia(s) P
Aquilo que corresponde para nós alunos a um pequeno momento de espera e de trabalho, é para a mãe a tradução de um sonho de vida. A tradução de meses de espera. Mas também a tradução de 2 dias de dores de parto... os seus Dias P.
Por tudo isto, tal como previsto, dirigi-me à torre “Materno-Infantil” do Hospital de Santa Maria, ao piso onde são feitos os partos. Naquela manhã, dirigi-me para lá “em pulgas”, com a minha bata branca, as folhas de perguntas básicas para preencher, as canetas coloridas que uso sempre e a minha maior boa-vontade para estar disponível para uma qualquer mãe à qual me competisse fazer a enrevista. Pretendia-se que fosse uma entrevista muito médica, com a aquisição de conhecimentos práticos acerca da mãe e do feto (prestes a nascer) e onde se conseguisse testar e colocar ao uso os nossos conhecimentos da área de pediatria e da sua semiologia.
Assim, naquela manhã, dirigi-me para lá “em pulgas”.
Após conseguirmos entrar na ala (explicar que éramos alunos, darmos os nomes, os números, apresentarmos os cartões – a segurança dos indefesos e muito desejados recém-nascidos antes de tudo), procurámos a enfermeira responsável. Habituada às visitas diárias dos inúmeros alunos (4ºAno para aprenderem de pediatria e seguirem de perto o recém-nascido, 5ºAno para investigar e compreender o partograma e os trâmitos do parto, 6ºAno em estágios, Ano Comum, Internos das várias especialidades, …), mas nem por isso totalmente solicita, indicou-nos com amabilidade a parturiente que haveria de ser a “mãe” do nosso trabalho, em todos os sentidos, “Hoje tiveram sorte, está ali uma mesmo mesmo quase, já cá está desde ontem…”.
Assim, dei por mim numa sala ainda com o aspecto de hospital antigo, que poucas enfermarias dos HSM ainda mantêm, onde estavam 2 parturientes, separadas com uma cortina.
A “nossa mãe” foi sempre muito solicita.
A “nossa mãe” foi prestável e amável desde o primeiro contacto até ao último. Mesmo por entre as dores que dizia ter (relembro que já estava em trabalho de parto havia 24h e o analgésico injectável tinha acabado de acabar) manteve-se calma e respondeu com interesse e com o que me pareceu grande sinceridade e verdade a todas as questões que lhe colocámos.
Ao seu lado estava a irmã, mais desassossegada do que ela, que ali se encontrava desde o início do trabalho de parto, ao qual pretendia assistir. Duas irmãs ligadas, pacientes uma com a outra, que esperavam pelo nascimento daquele bébé.
O instrumento que media as contracções uterinas e os batimentos cardíacos já havia, naquele propósito, inscrito linhas ondulantes em inúmeras folhas. Contam-nos inclusive que o papel se acabara e havia sido reposto. Olho com cuidado para a tira e queria perceber mais, mas limito-me a compreender que há uma regularidade no seu padrão. Não deve indicar que o parto estivesse para mais breve agora do que estava na véspera!
O bailado já havia começado e não dava sinais de terminar! A bailarina enviara (ou recebera, a ciência ainda não compreende bem) sinais ao sistema de que se ia dar um nascimento. Um bailado, uma dança, orquestrada pela Providência e com muitos figurantes. A personagem principal seria ela, com certeza, a bailarina Leonor.
A mãe queria que passasse aquela hora. Não que passasse mais uma hora, do relógio, porque dessas já ela tinha contado muitas! Com dores, que confessa serem “em todo o lado, não há um sitio que doa mais do que o outro”, a mãe queria muito que passasse aquela hora do parto.
Desacelerar…
Muito rapidamente, perante o “desaceleramento” do ritmo cardíaco do feto, muda-se a perspectiva de abordagem do parto.
Nós, os alunos atentos àquele parto, já havíamos interrogado a mãe e estávamos na sala dos profissionais a desmistificar o Boletim de Grávida e as suas anotações.
Naquele espaço onde se acolhem os nossos doentes saudáveis , cruzam-se muitos profissionais, com várias especialidades. Profissionais que procuram completar os seus conhecimentos mútuos, que dividem e partilham responsabilidades ao redor daqueles 2 seres, a mãe e o bébé. Há os enfermeiros-parteiros (no nosso caso, uma senhora enfermeira). Há por vezes os anestesistas. E há sempre os Obstetras, cuidadores da mãe e do parto, e os pediatras, cuidadores do bébé. E nesta dança de especialidades está engendrada, aprendida e colocada em prática de modo a que qualquer alteração patológica é percebida e pode ser cuidada por um especialista que a compreende e está treinado a lidar com ela.
Naquela sala de profissionais pedíamos ajuda ao médico obstetra para compreender melhor o Boletim da Grávida quando entrou a enfermeira, consternada porque sabia do que se tratava e da importância que tinha, para informar que o bébé estava em desaceleramento.
Este “pormenor” foi explicado à mãe como “uma brincadeira que o bébé está a fazer connosco” e determinava que se procedesse de imediato a uma cesariana, para evitar que o sofrimento fetal (que agora se sabia estar a acontecer) continuasse e determinasse lesões irreversíveis.
As águas haviam rebentado na véspera e havia contracções rítmicas, mas não se havia atingido dilatação suficiente para que a hipótese de um qualquer parto eutócico fosse a melhor opção.
Não se compreendem os mecanismos que levam ao parto. Não se compreende porque é que, de repente, circulam comunicadores endócrinos que imploram pelas contracções. Não se compreende quando haverá uma escolha acerca do benefício da expulsão do feto. Há, apenas, limites, balizas que ajudam os profissionais a prestarem um serviço optimizado. E naquele caso, depois de 24h de bolsas rotas, de desaceleramentos do ritmo cardíaco fetal, era inultrapassável a decisão de parto distócico por cesariana.
De repente!
De dentro do grande ventre emerge, efectivamente, a tão esperada vida!
Fomos, então, para perto da mãe, e não fizemos ar de alarmados, afinal só traria ânsia desnecessária para a situação. A cesariana foi uma decisão que agradou à “nossa mãe”, que já queria mais que tudo ter o bébé nos seus braços e que aquele trabalho de parto findasse.
O médico obstetra havia ido procurar um outro obstetra para que a cesariana se realizasse em segurança.
Enquanto a mãe era levada para a sala de cesarianas e estava sendo preprada e desinfectada (na mesma ala das salas de parto, totalmente preparada e aquecida para o efeito), nós fomos vestir-nos e preparar-nos para entrar na sala de partos.
Eu nunca havia assistido a um parto, embora já houvesse visto algumas cirurgias de vários tipos, mas nunca tinha sido confrontada com aquele conceito de emergência de um ser. Muito se fala entre nós, alunos de medicina a frequentar o 4ºano e cadeira de pediatria, dos partos. As opiniões são muito diversas, mas há algo de particularmente consensual: é um acto imponente, revestido de significado e que (mesmo no meio daquele fluxo de fluídos não-homogéneos não-límpidos) é especialmente especial.
Troquei impressões com a anestesista, procurei compreender a importância e os mecanismos da anestesia por via epidural.
E, de repente, depois de uma incisão transversal de grandes dimensões no ventre grávido, depois de introduzir a mão enluvada pela incisão, emerge pela incisão um bébé!
De repente, eis que emerge, tal como se sabia mas não se via, um bébé!
Para mim foi um momento de surpresa!
A mãe havia pedido para ver o cordão umbilical ser cortado, pelo que se baixaram os campos cirúrgicos para o efeito.
Segui então o bébé.
Era uma menina, a bébé Leonor. Eu talvez devesse dizer “uma linda menina”, mas não era propriamente disso que se tratava! A bébé Leonor estava coberta daquele líquido não-líquido branco e precisava de ser limpa, aspirada, vacinada, empulseirada, aquecida e preparada para o choque térmico que estava a viver!
A, agora, linda bébé Leonor seria então colocada em contacto com a sua mãe (enquanto esta era suturada), que ficou satisfeita pelo contacto, pela saúde e pelo fim de tal moroso e doloroso trabalho.
Segui então a bébé Leonor. Para o exterior da sala de cesariana.
Vestida, com um gorrinho, embrulhada numa mantinha do HSM com cores claras, a bébé Leonor prosseguiu caminho, ao colo da enfermeira parteira, para uma outra sala. Foi deitada num berço, por baixo de um aquecedor, com o tórax por cima de uma placa de detecção dos movimentos respiratórios (prevenir a morte súbita é importante!), ali ficou deitadinha a recém-nascida bébé Leonor.
Os olhinhos mimosinhos, ofuscados pela luz da janela, eram cinzentos. De vez em quando emitia um chorozinho, que eu procurei consolar com aquilo que a nossa querida assistente de Pediatria fazia, coloquei a sua mãozinha, tão desinfectada como a minha (tive muito esse cuidado!) na sua boquinha e “abanei-a”. E a bébé Leonor, recém-nascida, assim ficava, qual bailarina embalada. Mas logo começava novamente a chorar, afinal a sua dança não foi feita para ser bailada sozinha!
Eu tinha que me ir embora, tinha aulas naquela tarde!
Então, como se um qualquer tipo de comunicação pudesse ser estabelecido, pactuei com ela (mais em nome da minha consciência...) que ela ficaria sossegadinha até que eu chegasse à porta das escadas e fechasse a porta. Prometi ir vê-la no dia seguinte.
E assim foi.
Assim se perpetuou o bailado da bebé Leonor! Que muito antes de existir como ser no nosso amplo mundo, já existia, já se exprimia e treinava posturas e modos de agir! Muita vida existiu, longe dos nossos olhares e das nossas atitudes médicas, para aquela dançarina, actriz principal deste meu “trabalho de campo”!
Seja o leitor bem-vindo ao mundo técnico que apoia, que vigia, que garante saúde (em todas as suas dimensões), para o maior e melhor “Bailado Encantado da bebé Leonor”!
No âmbito da cadeira de Pediatria I, e como forma de avaliação, compete-nos a realização de um “Trabalho de Campo”. Este trabalho, penso eu, traz ao de cima a importância de sermos treinados para uma prática médica humana e autónoma. Muito em breve, seremos colocados face a face com os doentes e com os seus familiares e será da nossa responsabilidade os nossos comportamentos, a nossa postura. E a partir dos nossos contactos, livremente escolhidos, havemos de elaborar inúmeros relatórios, de incontáveis doentes, com patologias tão variadas como aquelas que encontramos nos livros pelos quais actualmente estudamos.
Muito em breve, tal como nos iremos aperceber, as nossas competências como profissionais de saúde e o nosso impacto último no outcome do doente dependerá em grande medida da nossa capacidade de chegar até este e de nos associarmos às suas ânsias, às suas dúvidas, conseguindo com isso e com o nosso grau de conhecimento ímpar (fruto do nosso estudo, do contacto com pares mais treinados e sabedores, e fruto também da nossa paixão e dedicação) aumentar mais e mais a sua qualidade de vida e diminuir mais e mais o desconforto das doenças preveníveis.
Dia(s) do Parto – Dia(s) P
Aquilo que corresponde para nós alunos a um pequeno momento de espera e de trabalho, é para a mãe a tradução de um sonho de vida. A tradução de meses de espera. Mas também a tradução de 2 dias de dores de parto... os seus Dias P.
Por tudo isto, tal como previsto, dirigi-me à torre “Materno-Infantil” do Hospital de Santa Maria, ao piso onde são feitos os partos. Naquela manhã, dirigi-me para lá “em pulgas”, com a minha bata branca, as folhas de perguntas básicas para preencher, as canetas coloridas que uso sempre e a minha maior boa-vontade para estar disponível para uma qualquer mãe à qual me competisse fazer a enrevista. Pretendia-se que fosse uma entrevista muito médica, com a aquisição de conhecimentos práticos acerca da mãe e do feto (prestes a nascer) e onde se conseguisse testar e colocar ao uso os nossos conhecimentos da área de pediatria e da sua semiologia.
Assim, naquela manhã, dirigi-me para lá “em pulgas”.
Após conseguirmos entrar na ala (explicar que éramos alunos, darmos os nomes, os números, apresentarmos os cartões – a segurança dos indefesos e muito desejados recém-nascidos antes de tudo), procurámos a enfermeira responsável. Habituada às visitas diárias dos inúmeros alunos (4ºAno para aprenderem de pediatria e seguirem de perto o recém-nascido, 5ºAno para investigar e compreender o partograma e os trâmitos do parto, 6ºAno em estágios, Ano Comum, Internos das várias especialidades, …), mas nem por isso totalmente solicita, indicou-nos com amabilidade a parturiente que haveria de ser a “mãe” do nosso trabalho, em todos os sentidos, “Hoje tiveram sorte, está ali uma mesmo mesmo quase, já cá está desde ontem…”.
Assim, dei por mim numa sala ainda com o aspecto de hospital antigo, que poucas enfermarias dos HSM ainda mantêm, onde estavam 2 parturientes, separadas com uma cortina.
A “nossa mãe” foi sempre muito solicita.
A “nossa mãe” foi prestável e amável desde o primeiro contacto até ao último. Mesmo por entre as dores que dizia ter (relembro que já estava em trabalho de parto havia 24h e o analgésico injectável tinha acabado de acabar) manteve-se calma e respondeu com interesse e com o que me pareceu grande sinceridade e verdade a todas as questões que lhe colocámos.
Ao seu lado estava a irmã, mais desassossegada do que ela, que ali se encontrava desde o início do trabalho de parto, ao qual pretendia assistir. Duas irmãs ligadas, pacientes uma com a outra, que esperavam pelo nascimento daquele bébé.
O instrumento que media as contracções uterinas e os batimentos cardíacos já havia, naquele propósito, inscrito linhas ondulantes em inúmeras folhas. Contam-nos inclusive que o papel se acabara e havia sido reposto. Olho com cuidado para a tira e queria perceber mais, mas limito-me a compreender que há uma regularidade no seu padrão. Não deve indicar que o parto estivesse para mais breve agora do que estava na véspera!
O bailado já havia começado e não dava sinais de terminar! A bailarina enviara (ou recebera, a ciência ainda não compreende bem) sinais ao sistema de que se ia dar um nascimento. Um bailado, uma dança, orquestrada pela Providência e com muitos figurantes. A personagem principal seria ela, com certeza, a bailarina Leonor.
A mãe queria que passasse aquela hora. Não que passasse mais uma hora, do relógio, porque dessas já ela tinha contado muitas! Com dores, que confessa serem “em todo o lado, não há um sitio que doa mais do que o outro”, a mãe queria muito que passasse aquela hora do parto.
Desacelerar…
Muito rapidamente, perante o “desaceleramento” do ritmo cardíaco do feto, muda-se a perspectiva de abordagem do parto.
Nós, os alunos atentos àquele parto, já havíamos interrogado a mãe e estávamos na sala dos profissionais a desmistificar o Boletim de Grávida e as suas anotações.
Naquele espaço onde se acolhem os nossos doentes saudáveis , cruzam-se muitos profissionais, com várias especialidades. Profissionais que procuram completar os seus conhecimentos mútuos, que dividem e partilham responsabilidades ao redor daqueles 2 seres, a mãe e o bébé. Há os enfermeiros-parteiros (no nosso caso, uma senhora enfermeira). Há por vezes os anestesistas. E há sempre os Obstetras, cuidadores da mãe e do parto, e os pediatras, cuidadores do bébé. E nesta dança de especialidades está engendrada, aprendida e colocada em prática de modo a que qualquer alteração patológica é percebida e pode ser cuidada por um especialista que a compreende e está treinado a lidar com ela.
Naquela sala de profissionais pedíamos ajuda ao médico obstetra para compreender melhor o Boletim da Grávida quando entrou a enfermeira, consternada porque sabia do que se tratava e da importância que tinha, para informar que o bébé estava em desaceleramento.
Este “pormenor” foi explicado à mãe como “uma brincadeira que o bébé está a fazer connosco” e determinava que se procedesse de imediato a uma cesariana, para evitar que o sofrimento fetal (que agora se sabia estar a acontecer) continuasse e determinasse lesões irreversíveis.
As águas haviam rebentado na véspera e havia contracções rítmicas, mas não se havia atingido dilatação suficiente para que a hipótese de um qualquer parto eutócico fosse a melhor opção.
Não se compreendem os mecanismos que levam ao parto. Não se compreende porque é que, de repente, circulam comunicadores endócrinos que imploram pelas contracções. Não se compreende quando haverá uma escolha acerca do benefício da expulsão do feto. Há, apenas, limites, balizas que ajudam os profissionais a prestarem um serviço optimizado. E naquele caso, depois de 24h de bolsas rotas, de desaceleramentos do ritmo cardíaco fetal, era inultrapassável a decisão de parto distócico por cesariana.
De repente!
De dentro do grande ventre emerge, efectivamente, a tão esperada vida!
Fomos, então, para perto da mãe, e não fizemos ar de alarmados, afinal só traria ânsia desnecessária para a situação. A cesariana foi uma decisão que agradou à “nossa mãe”, que já queria mais que tudo ter o bébé nos seus braços e que aquele trabalho de parto findasse.
O médico obstetra havia ido procurar um outro obstetra para que a cesariana se realizasse em segurança.
Enquanto a mãe era levada para a sala de cesarianas e estava sendo preprada e desinfectada (na mesma ala das salas de parto, totalmente preparada e aquecida para o efeito), nós fomos vestir-nos e preparar-nos para entrar na sala de partos.
Eu nunca havia assistido a um parto, embora já houvesse visto algumas cirurgias de vários tipos, mas nunca tinha sido confrontada com aquele conceito de emergência de um ser. Muito se fala entre nós, alunos de medicina a frequentar o 4ºano e cadeira de pediatria, dos partos. As opiniões são muito diversas, mas há algo de particularmente consensual: é um acto imponente, revestido de significado e que (mesmo no meio daquele fluxo de fluídos não-homogéneos não-límpidos) é especialmente especial.
Troquei impressões com a anestesista, procurei compreender a importância e os mecanismos da anestesia por via epidural.
E, de repente, depois de uma incisão transversal de grandes dimensões no ventre grávido, depois de introduzir a mão enluvada pela incisão, emerge pela incisão um bébé!
De repente, eis que emerge, tal como se sabia mas não se via, um bébé!
Para mim foi um momento de surpresa!
A mãe havia pedido para ver o cordão umbilical ser cortado, pelo que se baixaram os campos cirúrgicos para o efeito.
Segui então o bébé.
Era uma menina, a bébé Leonor. Eu talvez devesse dizer “uma linda menina”, mas não era propriamente disso que se tratava! A bébé Leonor estava coberta daquele líquido não-líquido branco e precisava de ser limpa, aspirada, vacinada, empulseirada, aquecida e preparada para o choque térmico que estava a viver!
A, agora, linda bébé Leonor seria então colocada em contacto com a sua mãe (enquanto esta era suturada), que ficou satisfeita pelo contacto, pela saúde e pelo fim de tal moroso e doloroso trabalho.
Segui então a bébé Leonor. Para o exterior da sala de cesariana.
Vestida, com um gorrinho, embrulhada numa mantinha do HSM com cores claras, a bébé Leonor prosseguiu caminho, ao colo da enfermeira parteira, para uma outra sala. Foi deitada num berço, por baixo de um aquecedor, com o tórax por cima de uma placa de detecção dos movimentos respiratórios (prevenir a morte súbita é importante!), ali ficou deitadinha a recém-nascida bébé Leonor.
Os olhinhos mimosinhos, ofuscados pela luz da janela, eram cinzentos. De vez em quando emitia um chorozinho, que eu procurei consolar com aquilo que a nossa querida assistente de Pediatria fazia, coloquei a sua mãozinha, tão desinfectada como a minha (tive muito esse cuidado!) na sua boquinha e “abanei-a”. E a bébé Leonor, recém-nascida, assim ficava, qual bailarina embalada. Mas logo começava novamente a chorar, afinal a sua dança não foi feita para ser bailada sozinha!
Eu tinha que me ir embora, tinha aulas naquela tarde!
Então, como se um qualquer tipo de comunicação pudesse ser estabelecido, pactuei com ela (mais em nome da minha consciência...) que ela ficaria sossegadinha até que eu chegasse à porta das escadas e fechasse a porta. Prometi ir vê-la no dia seguinte.
E assim foi.
Assim se perpetuou o bailado da bebé Leonor! Que muito antes de existir como ser no nosso amplo mundo, já existia, já se exprimia e treinava posturas e modos de agir! Muita vida existiu, longe dos nossos olhares e das nossas atitudes médicas, para aquela dançarina, actriz principal deste meu “trabalho de campo”!
Seja o leitor bem-vindo ao mundo técnico que apoia, que vigia, que garante saúde (em todas as suas dimensões), para o maior e melhor “Bailado Encantado da bebé Leonor”!
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